Vamos lá ver se nos entendemos. Há jornalistas em risco de desemprego na agência Lusa, há despedimentos anunciados no diário Público, revistas que fecham e outras que cortam nas colaborações dos jornalistas externos. Não há “cheta”, diz-se. A crise não justifica tudo, mas ajuda. Pois, numa altura destas, em que tudo parece desmoronar-se, vejo aqui a melhor oportunidade para se construir algo sólido. No entanto, para tal, é necessário perceber como é que se chegou ao jornalismo que se produz nos dias de hoje. E perceber o que se quer. É que parece que ainda há quem não tenha percebido. Por exemplo, o Sindicato dos Jornalistas ainda não percebeu, pois acabou de me informar que, no dia 18, pelas 11 da manhã, vai haver uma vigília de jornalistas em frente à Presidência do Conselho de Ministros, como se isso fosse mudar algo. É que não vai, não.
E vou explicar porquê.
Vou fazê-lo através de uma peça de teatro. Chama-se “A Noite”, estreou em Maio de 1979, e foi representada pela primeira vez pelo Grupo de Teatro de Campolide. Foi escrita por José Saramago. O prémio Nobel da Literatura de 1998. A noite é a noite de 24 para 25 de Abril, no ano de 1974.
A acção passa-se na redacção de um jornal não identificado. Há um administrador, dois contínuos, um director, um chefe de redacção, a secretária de redacção, redactores de “Província”, “Parlamentar”, “Estrangeiro”, “Cidade” e “Desportivo”, mais dois redactores não especificados, um fotógrafo e uma estagiária. Depois, temos ainda o chefe de tipografia, um linotipista e um compositor manual. Estes três últimos são os principais motores da acção e proporcionam alguns diálogos bastante críticos. Quando, por exemplo, o chefe de tipografia, Jerónimo (Valdemar de Sousa), enfrenta o chefe de redacção, Abílio Tavares (António Assunção) por causa de uma notícia da Guarda, preparada pelo redactor da secção “Província”, Torres (Luís Alberto), dá-se o seguinte diálogo: ++++
- VALADARES
(Levantando-se)
Você não me vem ensinar o direito que eu tenho. Nesta Redacção quem manda sou eu. Eu é que resolvo o que se publica ou não se publica. A notícia da Guarda não tem interesse para o jornal, já há pouco me tinha querido parecer e agora confirmei. Precisa de mais explicações? (Para Jerónimo.) Pode ir. Daqui a pouco lhe mando o artigo do director.
- JERÓNIMO
(Ao afastar-se, bate no ombro de Torres)
Deixa lá, não te rales tanto. O verbo é sempre o mesmo: eu obedeço, tu obedeces, ele manda. E para quê? Para fazer uma coisa que de jornal só tem o nome e o papel... (Encaminha Torres para o seu lugar.)
- VALADARES
O senhor Jerónimo far-me-á o favor de não vir para aqui indisciplinar a Redacção. Guarde esses entendimentos lá para fora. Aqui não admito. Para cumprir a sua obrigação profissional, só tem que falar comigo ou com os redactores que eu designar para o efeito. Percebeu?
- JERÓNIMO
(Volta a Valadares)
Ouça, senhor chefe da Redacção, estou pouco interessado em discutir consigo, nada interessado até, mas uma vez que me pediu por favor que não indisciplinasse a Redacção, não lhe vou ficar atrás em delicadeza. Portanto, faça por sua vez o favor de admitir que eu, como trabalhador deste jornal, ou prefere que diga funcionário?, tenho tanto direito como o senhor a dar opiniões sobre o que neste jornal se passa e o que este jornal faz. E se o senhor é o chefe da Redacção e está a dizer-me que me lembre disso, lembro-lhe eu que sou o chefe da Oficina...
- VALADARES
Da Oficina, não. Do turno da noite.
- JERÓNIMO
Coitado de você, se não fosse o turno da noite, coitado do seu lindo jornal, se não fosse o turno da noite. (Para Torres.) Não faças caso. (Vai dirigir-se para a porta da tipografia, mas volta atrás subitamente.) Apesar de tudo, também sou leitor deste jornal. (Sorri.)
++++ Nesta altura da noite ainda não se sabia que estava uma revolução na rua. Quando se começou a falar de movimentações de tropas, entram na redacção Jerónimo, acompanhado por Afonso, o linotipista e Damião, da composição manual. E diz Valadares:
- Que se passa? Há algum problema? Três já fazem comissão…
- JERÓNIMO
(Com serenidade que cobre uma exaltação profunda)
Está uma revolução na rua. O que é que o jornal vai fazer? Quando começam a ir originais para dentro?
++++ Como se vê através do diálogo, em 1974, na altura da última revolução conhecida em Portugal, os jornais eram uma máquina com vários elementos que se completavam. Os jornalistas trabalhavam com a matéria-prima que o dia-a-dia lhe proporcionava e tinham de produzir notícias que, antes de chegarem aos leitores, eram entregues aos tipógrafos. Estes, por sua vez, pegavam nas notícias como matéria-prima do seu trabalho, e passavam depois para a composição e impressão. Um trabalho de equipa. Neste ritmo de trabalho, no entanto, havia um claro jogo de poderes. Note-se no momento da noite em que Valadares pergunta a Jerónimo como é que soubera que havia uma revolução na rua. E o chefe da Oficina esclareceu:
- Não tenho nada que responder. Digo que está uma revolução na rua, e, como chefe da Oficina, venho perguntar que é que o jornal faz. O resto é com os senhores jornalistas. Eles é que são pagos para saber as notícias.
++++ E, mais à frente no diálogo, quando se tenta perceber se o golpe é de direita ou esquerda, Jerónimo dita condições:
- Se o golpe for de direita, ainda mais de direita, temos de estar preparados. Se for da esquerda… (Interrompe-se, quebra pela primeira vez a sua aparente impassibilidade, apoia-se nos ombros dos companheiros) Se for de esquerda, será a noite da nossa festa, e isto de festas, o melhor é começá-las o mais cedo possível. (Outro tom) Dou-lhe um quarto de hora para nos dizer o que pensa fazer. O jornal tem de começar a andar, e não há notícias na tipografia, nem vejo que as estejam a preparar aqui. Um quarto de hora.
++++ O poder dos tipógrafos era tremendo. Eles podiam condicionar o trabalho dos jornalistas e funcionavam como uma sociedade à parte. Os empregos nas tipografias passavam de pais para filhos. Para que houvesse um bom produto final, era necessário conciliar a harmonia entre a redacção e a tipografia. Mas, na hora do balanço final, eram os tipógrafos que tinham mais força. Quando os jornalistas faziam greve para reivindicar os seus direitos, tinham de contar com o apoio solidário dos tipógrafos, senão a greve falhava. Afinal, os tipógrafos eram os únicos que detinham o poder de evitar que uma edição feita apenas por um director, chefe de redacção e um estagiário. Se não pudesse ser impressa, não chegava à rua. Se os tipógrafos fizessem greve, não precisavam da solidariedade dos jornalistas. Estes podiam escrever as notícias que quisessem, mas não seriam depois impressas e distribuídas. E isso durava o tempo que os tipógrafos quisessem.
Dez anos mais tarde, em Inglaterra, um australiano chamado Rupert Murdoch acabou com isso tudo. De um dia para o outro, aproveitando as novas tecnologias, conseguiu despedir de uma assentada, 2500 tipógrafos.
E os que fizeram os jornalistas? Foram solidários com os camaradas trabalhadores do seu jornal? Não. Gostaram da ideia de já não dependerem da influência dos tipógrafos e continuaram a trabalhar.
Hoje, os jornalistas são as vítimas dessa falta de solidariedade. Não adianta andarem a fazer greves, pois não há a solidariedade dos tipógrafos. Não há a solidariedade de ninguém. Os jornais vão ser impressos na mesma. Não contem, por isso, com a solidariedade dos leitores. Esses têm mais em que pensar e estão-se a marimbar para os jornalistas. Querem é um produto final que lhes agrade. Se encontrarem, compram. Se não encontrarem, vão à procura em publicações estrangeiras. O Sindicato dos Jornalistas já não representa quase ninguém, pois não há jornalistas nas redacções: existem para lá uns tipos que alinham uns comunicados, fazem uns telefonemas para amigos e tentam ganhar a vida a produzir umas coisas para encher a tempo a internet e para ser impresso numa folha de papel de acordo apenas com o único critério daquilo que eles acham que é importante e, no fundo, reproduz apenas o gosto do seu umbigo. Um sindicato que queira fazer qualquer coisa para mudar isso, deveria olhar para as condições em que muitas redacções se “alimentam” para produzirem notícias. Quem são os profissionais, quais os seus salários e quais as condições de trabalho. Qual o fosso salarial entre quem manda e quem obedece? E, depois, como são divulgadas para os leitores, por que meios? Nessa altura, vão perceber que não há jornalistas. Há apenas órgãos de Comunicação Social. Sem jornalistas, pois é preciso abdicar da qualidade de ser jornalista para poder sobreviver àquilo que hoje se faz. E é por isso que eu digo que esta é uma época radiosa para quem quiser ser jornalista.
A edição em livro da peça de teatro de José Saramago tem uma frase introdutória. É uma frase que eu já dizia há muito tempo, ainda antes de a conhecer nesta obra.
Diz assim: “Todos faremos jornais um dia”.
E é verdade.
Que da noite se faça o dia.
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