Do outro lado da carta do Lar do Comércio
Foi há dez anos. A avó Alda tinha então 84 anos e encontrei-me com ela no aeroporto da Portela, onde chegara do Porto vinda de avião. Iria depois apanhar uma ligação aérea de Lisboa para Luanda, para se encontrar com o filho mais novo, o meu tio Carlos, radicado há anos em Angola. Depois, seguiriam ambos para o Lubango. Quem diria que com aquela idade iria meter-se na aventura de viajar para uma África que desconhecia? Mas o desafio lançado pelo meu tio - que pedia a presença da mãe no dia dos seus anos - revelou-se mais forte e a avó Alda acabou mesmo por dar essa alegria ao filho e foi passar férias a Angola, na antiga Sá da Bandeira. Durante a conversa que tive com ela na mesa do café Astrolábio, enquanto fazíamos horas, tive a oportunidade de ficar a conhecer muitas histórias da sua vida que até então ignorava. Pensei na ironia da minha profissão que me permitia saber tantas histórias sobre a vida de pessoas que não conheço, quando, ali, na minha família, brotava um manancial de episódios dignos de serem contados. Um dia talvez os conte...
Serve isto para dizer que, quando há uns meses a avó Alda baixou à “enfermaria” do Lar do Comércio, continuava uma pessoa lúcida e, segundo creio, os cuidados médicos pediam um acompanhamento normal de enfermagem. Ou seja, a avó Alda poderia manter-se no seu quarto, na cama que era a dela, com os móveis que conhecia, rodeada das fotos dos seus familiares. Era o sítio ideal para os seus últimos dias. Mas não deixaram que isso fosse possível.
Fui visitá-la no início das minhas férias. Ela estava na tal “enfermaria”, pois, alegava-se, tinha um “vírus infecto-contagioso”. Ela e mais duas senhoras. As três estavam numa quarto ao fundo da “enfermaria”, sem qualquer protecção para o exterior (podia ser que o tal vírus fosse respeitador e não passasse da porta), enquanto os visitantes eram submetidos a uma tortura psicológica, pois, antes de entrar, tinham de calçar luvas, colocar uma bata e uma máscara. E era assim que falavam com os seus familiares. Dias antes dessa minha visita, a avó Alda - contou-me o meu pai - tinha sido levada para um hospital e depois para outro, onde pernoitou, mas onde os médicos nada encontraram que justificasse um internamento e remeteram-na de volta à proveniência, ou seja, o Lar do Comércio da Maia.
Quando há dias o meu pai recebeu a carta, liguei pela primeira e única vez para o presidente do Lar do Comércio. Perguntei-lhe se me podia explicar, de forma lógica, o que se estava a passar.
Da explicação pouco ou nada me lembro. Tudo isto mexeu com os meus sentimentos - por isso, como jornalista, não consigo fazer nada e deixo isso ao critério de quem ler este testemunho. Para mim, a situação era completamente inexplicável e a desculpa da falta de meios ou da crise do país não pode servir para tudo. Mas, tomei alguns apontamentos que escrevi no verso da minha cópia da carta...
As soluções propostas pelo presidente do Lar do Comércio eram então as seguintes:
- Quando a “infecção” passar, seja daqui a cinco ou 15 dias, a D. Alda pode voltar ao quarto.
- O Lar do Comércio compromete-se a dar, no quarto, três refeições diárias (uma “benesse”, segundo me pareceu), ou seja, pequeno-almoço, almoço e jantar.
- Os medicamentos que eram pagos pelo Lar passam a ser pagos pelos familiares.
- Haverá duas a três mudas de fraldas diárias com respectiva mudança de posição.
- Pode ter uma pessoa paga pela família para lhe fazer companhia, mas apenas durante o dia. À noite não.
- Não pode deixar o quarto à noite para ir para a enfermaria, pois isso implicaria ocupar um outro espaço.
Quando transmiti estas informações ao meu pai - que andava a esgotar a via do diálogo com o presidente - perguntou-me a minha opinião. Sugeri que, se a pudesse tirar de lá, que a tirasse. Contudo, tal solução não era comportável com o investimento feito na compra do direito vitalício do quarto. Então que a avó Alda fosse para o quarto, para a companhia dos seus bens e das suas referências, quando a suposta “infecção” estivesse sarada e logo se veria o que se podia fazer em relação ao acompanhamento médico nocturno.
Não foi necessário esperar, pois a avó Alda resolveu-nos o problema mais cedo do que o que se esperava. Deu descanso aos meus pais e conquistou o descanso que há tanto almejava. Agora, espero, que a sua morte não dê descanso a quem sancionou aquela carta e só tinha aquelas soluções. O sofrimento e a forma como foi tratada não merece cair no esquecimento. A bem do futuro de todos nós.
Serve isto para dizer que, quando há uns meses a avó Alda baixou à “enfermaria” do Lar do Comércio, continuava uma pessoa lúcida e, segundo creio, os cuidados médicos pediam um acompanhamento normal de enfermagem. Ou seja, a avó Alda poderia manter-se no seu quarto, na cama que era a dela, com os móveis que conhecia, rodeada das fotos dos seus familiares. Era o sítio ideal para os seus últimos dias. Mas não deixaram que isso fosse possível.
Fui visitá-la no início das minhas férias. Ela estava na tal “enfermaria”, pois, alegava-se, tinha um “vírus infecto-contagioso”. Ela e mais duas senhoras. As três estavam numa quarto ao fundo da “enfermaria”, sem qualquer protecção para o exterior (podia ser que o tal vírus fosse respeitador e não passasse da porta), enquanto os visitantes eram submetidos a uma tortura psicológica, pois, antes de entrar, tinham de calçar luvas, colocar uma bata e uma máscara. E era assim que falavam com os seus familiares. Dias antes dessa minha visita, a avó Alda - contou-me o meu pai - tinha sido levada para um hospital e depois para outro, onde pernoitou, mas onde os médicos nada encontraram que justificasse um internamento e remeteram-na de volta à proveniência, ou seja, o Lar do Comércio da Maia.
Quando há dias o meu pai recebeu a carta, liguei pela primeira e única vez para o presidente do Lar do Comércio. Perguntei-lhe se me podia explicar, de forma lógica, o que se estava a passar.
Da explicação pouco ou nada me lembro. Tudo isto mexeu com os meus sentimentos - por isso, como jornalista, não consigo fazer nada e deixo isso ao critério de quem ler este testemunho. Para mim, a situação era completamente inexplicável e a desculpa da falta de meios ou da crise do país não pode servir para tudo. Mas, tomei alguns apontamentos que escrevi no verso da minha cópia da carta...
As soluções propostas pelo presidente do Lar do Comércio eram então as seguintes:
- Quando a “infecção” passar, seja daqui a cinco ou 15 dias, a D. Alda pode voltar ao quarto.
- O Lar do Comércio compromete-se a dar, no quarto, três refeições diárias (uma “benesse”, segundo me pareceu), ou seja, pequeno-almoço, almoço e jantar.
- Os medicamentos que eram pagos pelo Lar passam a ser pagos pelos familiares.
- Haverá duas a três mudas de fraldas diárias com respectiva mudança de posição.
- Pode ter uma pessoa paga pela família para lhe fazer companhia, mas apenas durante o dia. À noite não.
- Não pode deixar o quarto à noite para ir para a enfermaria, pois isso implicaria ocupar um outro espaço.
Quando transmiti estas informações ao meu pai - que andava a esgotar a via do diálogo com o presidente - perguntou-me a minha opinião. Sugeri que, se a pudesse tirar de lá, que a tirasse. Contudo, tal solução não era comportável com o investimento feito na compra do direito vitalício do quarto. Então que a avó Alda fosse para o quarto, para a companhia dos seus bens e das suas referências, quando a suposta “infecção” estivesse sarada e logo se veria o que se podia fazer em relação ao acompanhamento médico nocturno.
Não foi necessário esperar, pois a avó Alda resolveu-nos o problema mais cedo do que o que se esperava. Deu descanso aos meus pais e conquistou o descanso que há tanto almejava. Agora, espero, que a sua morte não dê descanso a quem sancionou aquela carta e só tinha aquelas soluções. O sofrimento e a forma como foi tratada não merece cair no esquecimento. A bem do futuro de todos nós.
Etiquetas: Alda Augusta, Lar do Comércio
3 Comentários:
É ... há coisas que revoltam. Mais ainda quando não conseguimos fazer nada e parece que ninguem nos quer ajudar. Mas precisamos ter força e acreditar que um dia as coisas vao mudar.
...Não sei se é boa ideia meter a foice em seara alheia ,quando as dores estão ainda tão frescas,mas ocorreu-me:
Na autópsia comprovou-se ao menos que era (e QUAL era )a doença infecto-contagiosa?
E teve o devido acompanhamento no que toca á doença?
Porque é que uns médicos foram de opinião não haver motivo para internamento e depois tudo termina de forma tão abrupta?
( a maior força do mundo ,entretanto para si e todos os familiares.E que alguem investigue .Porque a sua morte não será em vão se os outros idosos passarem a ter um tratamento mais digno.)
Abraço.
NÃO SEJAM HIPOCRITAS!!!! DEIXEM A AVÓ ALDA DESCANSAR EM PAZ.
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