20090212

Aterrador... imagem escrita para o futuro

"'Desescrever'" é o futuro dos escritores":

Póvoa de Varzim, 12 Fev (Lusa) - O romancista espanhol Juan José Millás considera que "desescrever" é o futuro dos escritores, que serão mais prestigiados e bem pagos por destruírem as suas obras do que foram por escrevê-las.

"Um dos maiores desafios da escrita seria resistir a esta longa etapa de desescrita na qual parece termos entrado", sustentou Millás quarta-feira à noite, numa sessão sobre "Os Desafios da Escrita" realizada no âmbito da 10ª edição do encontro literário de expressão ibérica Correntes d`Escritas, que decorre até sábado na Póvoa de Varzim.

O escritor defendeu que os subsídios para a destruição da cultura serão a etapa que se vai seguir às subvenções pagas pela União Europeia para a não-produção agrícola e pecuária nos países membros, dando como exemplo uma aldeia que conhece.

"Eu tenho uma casa numa região de Espanha que se chama Astúrias, que fica no norte, numa aldeia em que as pessoas viviam das vacas e do leite que produziam as vacas, bem como da agricultura. Quando chegou a globalização e a União Europeia, limitou-se a produção de leite aos criadores de gado, criaram-se quotas", relatou.

"`- Você quanto produzia? - Produzia tanto. - Pois, em função do que você produzia antes, agora poderá produzir tantos litros por ano` - E esta óptica foi-se estendendo a toda a cultura agrícola e pecuária espanhola, de forma que, em muitos sítios, se deixou de cultivar, se deixou de criar gado", observou.

E ainda por cima - prosseguiu - "esta falta de actividade era subvencionada, ou seja, pagava-se às pessoas para deixarem de produzir leite, para que deixassem de produzir trigo, ovos, etc. Esta foi uma primeira etapa".

Numa segunda etapa, "pagava-se, sobretudo, para destruir: quer dizer, uma pessoa ia ao ministério da Agricultura e dizia `matei cinco vacas` e pagavam-lhe por ter morto as cinco vacas, ia-se lá e dizia-se `eu arrasei três hectares de vides` e pagavam-lhe tanto pelo hectare".

"De maneira que culturas milenares, sítios onde o cultivo e as ganadarias eram uma forma de cultura havia séculos, desapareceram e aqueles campos foram substituídos por lugares onde as pessoas fazem motocross, porque os camponeses, com o dinheiro que lhes davam por matar vacas ou arrancar vides, compravam motos todo-o-terreno", explicou, provocando o riso na audiência.

Juan José Millás sonhou algumas vezes que os ministros da Cultura da União Europeia se reuniam e decidiam que "o romance, a narrativa, era uma indústria contaminadora e que havia que afastá-la dos núcleos urbanos do Ocidente".

"De maneira que chegou uma altura em que os diálogos se construíam no Vietname, as descrições na Coreia, os monólogos interiores não sei onde, mas no sudeste asiático, e depois juntava-se tudo e montava-se o livro na Alemanha, por exemplo. Isto, numa primeira etapa", sublinhou.

"Numa segunda etapa, davam-nos quotas também. Diziam: `- você, quanto escreveu ao longo da sua vida? - Tantas páginas. - Pois, você pode escrever três contos por ano`", ilustrou.

Depois, numa terceira etapa, a situação agravar-se-ia mais ainda: "Pagar-nos-iam por desescrever", disse.

"Isso quer dizer que eu chegaria ao ministério da Cultura e diria `Desescrevi um romance meu, chamado `A Desordem do Teu Nome``, por exemplo, e pagar-me-iam por tê-lo desescrito e, além disso, quereria o destino que me pagassem mais por tê-lo desescrito do que por tê-lo escrito", comentou.

"E apareceria uma figura nova, a do desescritor, que seria um tipo logicamente boémio, desastrado... Vê-lo-iamos passar por aí e perguntaríamos: `Quem é este? - Este é um desescritor estupendo, desescreveu `Madame Bovary`!", observou, desencadeando novas gargalhadas.

Juan José Millás considera que isto, "em alguma medida, e de forma subtil, já aconteceu".

"Não de um modo tão descarado como sucedeu na agricultura ou na pecuária, mas de modo subtil e secreto já começámos a desescrever", defendeu.

ANC.

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