20040311

Recordações de 1995...

(ESTE VAI SER UM POST LONGO, QUE, AINDA POR CIMA, VAI TER UMA NÃO MENOS LONGA INTRODUÇÃO, PORÉM É ONDE VOU EXPLICAR COMO ME INTERESSEI POR UMA SITUAÇÃO QUE, NA MINHA OPINIÃO, CAVACO SILVA, NO SEGUNDO VOLUME DA SUA AUTOBIOGRAFIA POLÍTICA, NÃO CONTOU COM TODOS OS FACTOS PÚBLICOS, POSSIBILITANDO ASSIM UMA OUTRA INTERPRETAÇÃO DOS ACONTECIMENTOS).

Olho hoje para o meu antigo passaporte apenas para confirmar as datas.
É verdade: entrei em Angola a 2 de Agosto de 1995 e saí a 29 de Setembro.
Foram dois meses de férias em casa do meu tio, no Lubango, onde celebrei os meus 23 anos.
Regressei a tempo de votar nas eleições legislativas de 1 de Outubro, as tais que deram a vitória a Guterres, terminando assim com 10 anos de governo PSD. Não seguira a campanha eleitoral com muito interesse, mas ia vendo algumas notícias, de vez em quando, através RTP Internacional.
Lembro-me que foi o Verão das manifestações no Porto contra a venda do Coliseu à Igreja Universal do Reino de Deus.
Foi ainda Verão da canção "É o Bicho, É o Bicho", do Iran Costa, que animava os comícios do PP de Manuel Monteiro e Paulo Portas.
Foi ainda o Verão do manifesto "anti-Portas", de Carlos Candal.
E foi o Verão da decisão.
Foi quando Fernando Nogueira disse que já conhecia a decisão de Cavaco em relação a uma candidatura a Belém, quando, aparentemente, ainda não haveria qualquer decisão de Cavaco... Contudo, só tive conhecimento deste "desencontro" poucos minutos antes de embarcar no avião para Lisboa.
Os últimos dias em Angola foram passados em Luanda, e não tivera muitas oportunidades de ouvir notícias de Portugal. Estava na sala de espera do aeroporto 4 de Fevereiro quando vi um exemplar do diário "Público", ali abandonado. Lembro-me que era do dia anterior, logo 28 de Setembro, e explicava como esse "desencontro" provocara uma crise de credibilidade entre Nogueira e Cavaco. E como isso poderia ser fatal para o futuro do novo líder do PSD.
Nunca percebi completamente como acontecera aquele "desencontro" entre dois políticos tão experientes...
Nunca mais tive oportunidade de voltar a pensar logicamente nisso visto que, dois dias depois, com a vitória do PS, teve início uma nova era em Portugal.
Ao fim de quase 10 anos, a primeira vez que regressei àquele Verão do ano de 1995, foi na passada sexta-feira, dia 5, quando comprei o livro comemorativo dos 14 anos do "Público", com a reprodução de 300 das suas primeiras páginas.
Ao folhear a história destes anos mais recentes, onde grande parte dos acontecimentos estão gravados no meu imaginário de jornalista, reparei numa edição de Setembro de 1995. Era uma edição que eu falhara, pois não havia grande possibilidades de ter acesso à Internet ou ao "Público" no deserto de Moçâmedes...
Está na página 150 desse livro comemorativo e tem a particularidade de ser a histórica primeira página onde se anunciava em manchete "o bárbaro aglomerado de letras" que compunham o endereço electrónico do "Público": "http://www.publico.pt/publico/hoje".
Nessa mesma edição, em títulos mais pequenos, mas devidamente destacados no espaço reservado à cobertura da campanha das eleições legislativas de 95, está lá a seguinte chamada de primeira página: "Nogueira já conhece mas não revela decisão de Cavaco sobre Belém".
Quando li isto, no passado dia 5, regressei ao aeroporto em Luanda e à minha surpresa em relação ao "desencontro" entre Nogueira e Cavaco Silva.
Três dias depois, nesta segunda-feira, conforme já aqui deixei registado, estive na FNAC a assistir ao lançamento do segundo volume da autobiografia política de Cavaco Silva. E reparei que ele falou sobre o que aconteceu no ano de 1995.
Conforme expliquei nesta longa introdução, os acontecimentos de 1995 e o "desencontro" entre Fernando Nogueira e Cavaco Silva eram um mistério para mim.
Depois de ter lido a versão de Cavaco, fiquei com a sensação de que, afinal, é mesmo um grande mistério que, ainda por cima, Cavaco Silva explica de uma forma, no mínimo, ambígua.
Termina aqui a minha introdução explicativa de como me interessei pelo assunto e como senti necessidade de recordar certos factos.
Segue agora o "post" propriamente dito:

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Cavaco Silva, ao recordar o Verão de 1995, escreveu (página 498 do segundo volume da sua autobiografia política) ter informado Fernando Nogueira que se "inclinava para aceitar a candidatura à Presidência da República, mas disse-lhe que só iria anunciá-la depois das eleições legislativas".
Cavaco relatou depois isto: "No dia 26 de Setembro de 1995, ocorreu um pequeno desencontro entre declarações minhas e de Fernando Nogueira que a comunicação social, cujo comportamento na campanha eleitoral era de óbvio enviesamento a favor do PS, procurou empolar. Nesse dia almocei na residência oficial de São Bento com o presidente de Angola, José Eduardo dos Santos. Antes, recebi Fernando Nogueira no meu gabinete de trabalho para uma troca de impressões sobre a parte final da sua campanha e para acertar a minha participação no comício de encerramento, em Setúbal. Não falámos sobre as eleições presidenciais.
Depois do almoço, segui para Mangualde, para presidir à inauguração de uma nova linha de produção da fábrica de aglomerados de madeira da SONAE. No final, os jornalistas perguntaram-me pela enésima vez se ia candidatar-me à Presidência da República e eu voltei a repetir, como sempre tinha feito, que estava a reflectir e que ainda não tinha tomado uma decisão. Fernando Nogueira, em conversa informal com jornalistas e que eu desconhecia, terá dado a entender que sabia que eu seria candidato. A imprensa tentou explorar esta aparente contradição para criar dificuldades ao líder do PSD. Sobre a minha declaração em Mangualde, obviamente feita para não dizer nada de especial aos jornalistas, alguns espíritos perturbados ou malévolos chegaram a acusar-me, depois da derrota do PSD nas eleições legislativas, de ter pretendido prejudicar Fernando Nogueira. Era uma insinuação de tal forma absurda que entendi não ser merecedora de qualquer comentário da minha parte."
Quando li isto, e como desconhecia o que se passara em Setembro de 1995, calculei que Fernando Nogueira falara com os jornalistas depois do almoço que Cavaco tivera com José Eduardo dos Santos.
Imaginei que o novo líder do PSD teria dito aos jornalistas que o acompanhavam na campanha a sua opinião sobre a provável candidatura de Cavaco, e que essa notícia teria circulado imediatamente através da rádio.
Pensei que só assim é que se poderia explicar o facto de Cavaco Silva, perfeitamente empenhado na inauguração em Mangualde, desconhecer qualquer comentário de Fernando Nogueira.
Presumi que os jornalistas que estavam em Mangualde, provavelmente alertados pelas suas redacções ou então mais atentos às notícias da rádio, tivessem tido ordens para confrontar Cavaco com as declarações de Nogueira e que o primeiro-ministro, coitado, como ainda não fazia a mínima ideia do teor das palavras que o candidato do seu partido teria dito sobre a sua provável candidatura a Belém, manteve, por isso, a postura que sempre tivera e disse, muito naturalmente, que ainda nada estava decidido.
Os culpados da exploração de uma "aparente contradição" era essa comunicação social "de óbvio enviesamento a favor do PS", via-se mesmo...
Só que a história dos factos é ligeiramente diferente...
Lembram-se da primeira página histórica do "Público" onde está o endereço electrónico do diário em grande destaque? É a mesma edição que tem nessa mesma primeira página a notícia de que Nogueira já conhece mas não revela a decisão de Cavaco.
E sabem de que dia é?
Não?!
É a daquele dia 26 de Setembro de 1995...
Pois é...
Quer isto dizer que a declaração de Nogueira era uma das notícias que faziam a primeira página no dia desse encontro entre Cavaco Silva e Fernando Nogueira, em São Bento, antes do almoço com José Eduardo dos Santos e antes da partida de Cavaco para Mangualde, onde faria o "desmentido" a respeito de uma notícia que "desconhecia".
É histórico o facto de Cavaco Silva não perder muito tempo a ler jornais. Os seus assessores faziam-lhe a selecção das notícias mais importantes.
Então, como foi possível que aquela notícia tivesse escapado à atenção dos assessores na altura em que Cavaco esteve com Nogueira?
Alguém acredita que Cavaco Silva, antes do almoço ou depois do almoço com José Eduardo dos Santos, ou ainda na viagem entre São Bento e Mangualde, nunca soube, nunca foi informado, nunca foi confrontado, nunca lhe foi sequer sussurrado, que aquelas declarações de Fernando Nogueira a seu respeito estavam na primeira página de um diário de grande expansão nacional, que, já agora, até pertencia à mesma empresa responsável pela fábrica que iria inaugurar?
E porque Cavaco não explicou isso na sua autobiografia política?
Que "mistério" ainda residirá aí?

.......
Cavaco Silva, no prefácio do seu livro, diz que achou importante não omitir registos que podiam "ser úteis para aqueles que um dia queiram, com seriedade, fazer a história da política portuguesa das últimas décadas do século XX".
Todos nós lhe agradecemos.