Na crónica de ontem no "DN", o ex-Presidente da República, Mário Soares, esclarece que não respondeu aos pedidos dos jornalistas para prestar declarações sobre "um hipotético conflito institucional, divulgado por gente anónima", que facilmente se percebe ser o caso das escutas em Belém. O ex-Presidente tem uma qualidade única que lhe permite parecer ser a mais despudorada das virgens políticas nacionais. Soares afirma que não quis "alimentar" o conflito apenas porque "não é elegante dirigir críticas aos seus sucessores", além do "dever de reserva" que a qualidade de membro do Conselho de Estado lhe impõe. Tenho pena de quem acredita sinceramente nisto – tanto mais que na mesma crónica, o ex-Presidente diverte-se a criticar a prestação da candidata a primeira-ministra social-democrata durante a última entrevista que deu ao Canal do Estado.
Para perceber como Soares não nenhuma virgem política nisto de escutas em Belém e de ataques institucionais, recorde-se o ano de 1994. Em Março, o socialista António Guterres acabava de ser reeleito secretário-geral do PS e faltava um ano e meio para as eleições legislativas de 1995, mas em Belém, o antigo secretário-geral do PS e então Presidente da República, Mário Soares, movimentava a sua esfera de influências contra o então primeiro-ministro social-democrata, Cavaco Silva.
Em Abril desse ano foi detectado um microfone escondido no soalho do gabinete do então Procurador-Geral da República, Cunha Rodrigues. O caso lançou ondas de alerta que chegaram aos corredores do Palácio de Belém. O então Presidente da República colocou literalmente os seus assessores de traseiro para o ar à procura de microfones escondidos em aparelhos de telefone ou gravadores “esquecidos” em alguma gaveta ou debaixo de alguma secretária. Guterres não quis perder o comboio e foi para os jornais dizer que também achava que estava a ser escutado.
Diga-se de passagem que Cavaco Silva até que teria bons motivos para conhecer as conversas do Presidente da República, pois temia que o ocupante da cadeira de Belém pedisse a dissolução da Assembleia da República. Mário Soares levava a cabo pequenos actos públicos de destabilização do Governo, como a "Presidência Aberta" dedicada ao Ambiente e Qualidade de Vida, no início de Abril, ou ainda o facto de que, em Maio, realizava-se o congresso "Portugal Que Futuro?". Este último evento foi um desfilar de críticas contra o então governo de maioria absoluta do PSD e, apesar de não ter contado com a presença ou apoio explícito do Presidente da República, teve a participação activa de conhecidas figuras públicas próximas da área "soarista". O suficiente para dar a entender que quem mandava no congresso era Belém.
Recorde-se que foi também nesse ano que o então director do SIS, Ladeiro Monteiro, abandonou a direcção da secreta em conflito com o ministro Dias Loureiro. O mesmo Dias Loureiro que há meses teve de abandonar o lugar de Conselheiro de Estado em Belém depois de o seu nome ter sido envolvido no escândalo do BPN.
O Verão de 1994 viu ainda o PS a vencer as eleições para o Parlamento Europeu, garantindo assim a legitimidade de António Guterres como líder da Oposição e cada vez mais próximo da vitória nas eleições gerais de Outubro de 1995. Outro factor que, a 24 de Junho de 1994, contribuiu para o fim do cavaquismo foi a carga policial contra os manifestantes da Ponte 25 de Abril. O Presidente da República, ao mencionar depois o "direito à indignação", colocava mais lenha na fogueira política que fazia Cavaco Silva arder "em lume brando". O ano político de 1994 ainda veria, em Outubro, o PS a convocar os "Estados Gerais" e, no início de Dezembro, Mário Soares usava o termo "ditadura de maioria" durante uma entrevista ao mesmo "DN" onde hoje escreve crónicas. Pedro Santana Lopes, actual candidato do PSD à Câmara de Lisboa e ex-primeiro-ministro, foi então o primeiro a perceber que o barco estava a afundar-se e, quatro dias antes do Natal de 1994, demitiu-se do cargo de Secretário de Estado da Cultura.
Texto originalmente publicado no blogue Eleições 2009.
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