Estava a ler a entrevista de Carlos Vaz Marques ao escritor António Lobo Antunes na retornada revista "Ler"...
... quando tive de parar neste diálogo sobre a rivalidade entre o entrevistado e o Nobel da Literatura, José Saramago...
A afirmação de que houve um livro de Lobo Antunes atirado ao chão por José Saramago - acto do qual Lobo Antunes garante ter visto registo fotográfico - creio que só poderá dizer respeito a um trabalho que fiz - juntamente com a Carla Pernes e o António Nascimento -, em 1998, no entretanto extinto semanário "Tal&Qual" (que espera também pelo dia em que "retornará").
No Natal daquele ano, vesti-me de Pai Natal e fui oferecer prendas a algumas personalidades públicas. Eram prendas obviamente provocantes, muito ao estilo da filosofia do jornal. Assim, por exemplo, demos um livro de discursos de Mário Soares ao Presidente Jorge Sampaio - que nos agradeceu tendo enviado um livro devidamente autografado com discursos seus para a nossa redacção... -, demos uma foto de Pinto da Costa ao então presidente do Benfica, Vale e Azevedo, uma tampa de sanita para o ministro da Cultura, Manuel Maria Carrilho, e sapatos de salto alto para a ministra da Saúde, Maria de Belém.
Na parte final da reportagem, soubemos que José Saramago, acabado de regressar de Estocolmo onde fora receber o Nobel da Literatura, estava num hotel de Lisboa perto da nossa redacção, então situada no Marquês de Pombal. Decidimos oferecer-lhe um livro de António Lobo Antunes. Na livraria Buchholz, nessa tarde, escolhi o "Livro de Crónicas", editado um mês antes. Vesti-me de Pai Natal e fui com o repórter fotográfico, o José Carlos Pratas, para o hotel.
Nunca soube a razão da zanga entre ambos e pensava até que seria algo exagerada. Acreditava, ingenuamente, que a minha prenda iria ser recebida com algum desportivismo, como aliás todas as outras que oferecera - até à altura, apenas o então primeiro-ministro António Guterres se recusara a receber e abrir a sua prenda, mas isso é uma outra história que um dia também vai ser explicada...
Saramago apareceu no lobby do hotel e fiz a rábula: "Olá, sou o Pai Natal do 'Tal&Qual' e tenho aqui uma prenda que espero que não leve a mal".
O escritor parecia um menino quando lhe passei o embrulho para as mãos. Os olhos brilhavam e perguntava à medida que rasgava o papel à minha frente com um sorriso: "Ah, mas o que será?". Naquele momento, por uns segundos, fiquei suspenso a aguardar a reacção. Assim que topou o nome do escritor rival bem visível e impresso com letras encarnadas, os olhos do Nobel da Literatura fulminaram-me. Fiquei sem reacção, apenas de boca aberta e só consegui estender a mão para receber de volta o livro. Saramago ainda me disse: "Tome, não aceito e considero isto uma provocação"...
José Saramago não atirou nenhum livro de António Lobo Antunes para o chão. Pelo menos do ponto de vista literal do termo. Do ponto de vista literário, o nosso título acabou por ser um jogo de palavras com o nome do livro do Nobel, "Levantado do Chão"*. Contudo, o acto em si foi pior do que atirar o livro de Lobo Antunes para o chão, conforme demonstra a sequência do que se passou, sagazmente captada pela lente do Pratas. Saramago foi de uma frieza tal que nunca consegui compreender.
Aqui fica o esclarecimento sobre algo que acredito ser o que Lobo Antunes referiu na entrevista à "Ler". Espero assim que, um dia, daqui a muitos anos, quando alguém se debruçar sobre o assunto e recolher aquela afirmação de Lobo Antunes e procure verificar a situação, encontre aqui a explicação. Para que a afirmação de Lobo Antunes não seja descontextualizada e se transforme em mais uma certeza errada.
Quanto ao "Livro de Crónicas" que José Saramago me deu para a mão, está aqui, em minha casa, bem guardadinho, lido e relido...
*"Portanto, o livro chama-se Levantado do Chão porque, no fundo, levantam-se os homens do chão, levantam-se as searas, é no chão que semeamos, é nos chão que nascem as árvores e até do chão se pode levantar um livro". (Palavra de José Saramago)
Muito bem!
ResponderEliminarE assim se faz história.
Muito bem!
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