Deliberação
Para que se saiba, aqui fica a cópia de um e-mail que recebi hoje:
DELIBERAÇÃO
sobre
DENÚNCIA APRESENTADA POR FREDERICO DUARTE CARVALHO
CONTRA O JORNAL “EXPRESSO” POR ALEGADO ABUSO DE LIBERDADE DE IMPRENSA
(Aprovada em reunião plenária de 19 de Novembro de 2003)
1. A DENÚNCIA
1.1 No dia 4 de Setembro de 2003 foi recebido e-mail de Frederico Teixeira de Carvalho, jornalista do “Tal & Qual” no qual se refere designadamente o seguinte:
“No passado sábado, dia 30 de Agosto, no espaço ‘Política à Portuguesa’, o director do semanário ‘Expresso’, José António Saraiva, assina um texto de opinião intitulado ‘Lágrimas de Crocodilo’, relacionado com a morte do representante da ONU em Bagdad, Sérgio Vieira de Mello.
A dada altura do seu texto, o autor menciona a questão das armas de destruição maciça e diz que isso foi apenas uma ‘razão formal’ para a intervenção norte-americana no Iraque depois dos atentados terroristas do 11 de Setembro em Nova Iorque e em Washington.
E exemplifica isso desta forma:
‘Imagine o leitor que vivia num sítio problemático, perto de um reduto de marginais, que um dia lhe assaltavam a casa, matando um membro da família.
O que faria, se tivesse meios para combater os marginais: ficaria à espera de ser de novo assaltado ou iria ao encontro deles, tentando neutralizá-los?’
Tratando-se de um jornal de referência e sendo um artigo de opinião assinado pelo próprio director, vemos que o mesmo procurou justificar a intervenção norte-americana no Iraque – que não contou com o aval da ONU – comparando-a a um hipotético caso que se poderia passar no seio de uma qualquer família portuguesa que ‘tivesse meios para combater os marginais’”.
Conclui citando os preceitos dos artigos 298º e 330º do Código Penal, respectivamente sobre a “apologia pública do crime” e o “incitamento à desobediência colectiva” que considera aplicáveis à situação e submete o caso à consideração desta Alta Autoridade como entidade competente para garantir a liberdade de imprensa e reprimir os seus abusos.
1.2 Solicitado ao autor do editorial, director do jornal “Expresso”, José António Saraiva, e nessa qualidade, que se pronunciasse, querendo, sobre o teor da denúncia, respondeu o mesmo dizendo textualmente:
“Com o devido respeito pelo órgão que V.Exª dirige, a queixa apresentada contra mim parece-me ridícula e absolutamente despropositada. Não percebo mesmo como a AACS a considerou razoável.
No meu artigo não ‘recompenso’ ou ‘louvo’ alguém que cometeu um crime. Nem incito à ‘desobediência de lei’ ou de ‘ordem pública’. Limito-me a comparar a acção dos EUA no Iraque com a de uma família a quem mataram um parente e procura ‘neutralizar’ os criminosos.
É esta, exactamente, a palavra que utilizo: neutralizar. Ou seja: evitar que cometam outro crime.
Quanto muito, eu poderia ser acusado de avalizar a ideia de que, em determinadas circunstâncias, é legítimo fazer justiça pelas próprias mãos. Mas, mesmo aí, toda a gente conhece as minhas opiniões e sabe como tenho defendido a necessidade absoluta de respeitar as regras do Estado de Direito.
Repito: o que pretendi, na passagem do artigo em questão, foi levar os leitores a compreender o estado de espírito dos americanos, comparável ao de uma família a quem mataram um membro e que, em desespero, procura defender-se indo ao encontro dos criminosos para impedir novos ataques”.
2. O TEXTO EM CAUSA
2.1 No texto em causa, e no que interessa à questão suscitada pelo denunciante, o Director do jornal “Expresso”, sob o título “Lágrimas de Crocodilo”, afirmou:
“A esquerda não invocou a morte de Sérgio Vieira de Mello por razões piedosas – agitou-a como bandeira para condenar a ocupação americana.
Nesta medida – e dito cruamente – esta morte até conveio a essa esquerda.
Por isso, muitas das lágrimas que chorou foram lágrimas de crocodilo.
A invasão do Iraque pelos americanos tem sido objecto de quilómetros de prosa que, no entanto, ignoram quase sempre o essencial.
Discutem-se interminavelmente, por exemplo, as armas de destruição maciça.
Ora não tenho muitas dúvidas de que, nesta questão, Bush e Blair mentiram – ou, pelo menos, empolaram intencionalmente as informações disponíveis.
Mas esse foi apenas o pretexto para a invasão.
A sua ‘razão formal’.
A questão essencial teve (e continua a ter) que ver com o terrorismo.
Imagine o leitor que vivia num sítio problemático, perto de um reduto de marginais que um dia lhe assaltavam a casa, matando um membro da família.
O que faria, se tivesse meios para combater os marginais: ficaria à espera de ser de novo assaltado ou iria ao encontro deles, tentando neutralizá-los?
Foi isto – com uma simplicidade que é a sua fraqueza e a sua força – que os EUA fizeram: atacados brutalmente no 11 de Setembro, foram dar luta aos terroristas no seu terreno.”
2.2 O que é questionado é saber se, num artigo de opinião, e independentemente da liberdade de imprensa que a Constituição e a Lei asseguram e esta Alta Autoridade é suposta garantir, se não estará perante um excesso que a mesma Lei impede e condena.
E, isso, na medida em que, por raciocínio comparativo, se equiparam no texto em causa, os EUA a um vulgar cidadão, acossado, na sua própria casa, por um bando de marginais – os iraquianos – na expectativa de ser assaltado.
Isto mesmo que os marginais não tivessem armas de fogo, mas ameaçassem atacar apenas com as suas mãos e de surpresa.
Nesta situação, e alegadamente, o articulista, Director do “Expresso”, no seu editorial, interroga-se:
“O que fazia, se tivesse meios para combater os marginais: ficaria à espera de ser de novo atacado ou iria ao encontro deles, tentando neutralizá-los?”
Ou seja, responderia à força com a força, ou recorreria antes à Polícia para que detivesse os suspeitos?
Tiraria desforço indiscriminadamente contra quem quer que fosse, que lhe parecesse suspeito ou entregaria a resolução do caso à Justiça para que julgasse e condenasse os culpados?
Nestas hipóteses, que o Director do “Expresso” enuncia, a sua opção, para justificar a acção dos EUA, foi a da resposta pela força, em vez do recurso aos meios legais e à intervenção da Justiça para julgar os culpados.
Será lícita uma tal afirmação, no contexto em que foi tornada pública pelo escrito?
3. APRECIAÇÃO DA SITUAÇÃO À LUZ DO DIREITO APLICÁVEL
3.1 A Constituição, no seu artigo 37º dispõe:
“1. Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações.
2. O exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura.
3. As infracções cometidas no exercício destes direitos ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal, sendo a sua apreciação da competência dos tribunais judiciais”.
E o artigo 38º acrescenta
“1. É garantida a liberdade de imprensa.
2. A liberdade de imprensa implica:
a) A liberdade de expressão e criação dos jornalistas e colaboradores literários, bem como a intervenção dos primeiros na orientação editorial dos respectivos órgãos de comunicação social quando pertencerem ao Estado ou tiverem natureza doutrinária ou confessional;
(...)”
Por seu turno, o artigo 39º atribui a esta Alta Autoridade a incumbência de “assegurar a liberdade de imprensa... bem como a possibilidade de expressão e confronto das diversas correntes de opinião”.
3.2 Por seu turno, a Lei de Imprensa especifica que
“a liberdade de imprensa tem como únicos limites os que decorrem da Constituição e da lei de forma a (...) defender o interesse público e a ordem democrática”.
E, no seu artigo 22º, é garantida aos jornalistas a “liberdade de expressão e de criação”, cujo conteúdo é definido no Estatuto do Jornalista nos termos do seu artigo 7º nº1, sem prejuízo do cumprimento dos deveres constantes do seu artigo 14º e do respectivo Código Deontológico, do qual se ressalta a obrigação de relatar os factos com rigor e exactidão e interpretá-los com honestidade, para além de dever respeitar a orientação e os objectivos definidos no estatuto editorial do órgão de comunicação para que trabalham.
3.3 Entre as óbvias limitações à liberdade de imprensa, por constituir violação dos princípios de interesse e ordem públicas fundadores da ordem democrática, estão as práticas que se possam subsumir como violação dos preceitos dos artigos 20º e 24º da Constituição ou dos artigos 234º, 239º nº2, 240º nº2, 252º, 297º, 298º, 314º, 316º, 326º e 330º do Código Penal.
3.4 Será do confronto do estabelecido nestes preceitos e à luz dos normativo deles decorrente que se impõe apreciar e analisar o escrito publicado pelo Director do “Expresso”.
Ora dúvidas legítimas não são possíveis quanto à inteira liberdade do articulista, mesmo na qualidade de Director do semanário, para exprimir as suas opiniões favoráveis à intervenção armada norte-americana no Iraque.
Acontece, porém, que, para justificar tal invasão, mesmo sem a comprovação da existência de armas de destruição maciça que poriam em risco a paz mundial, o Director do “Expresso” usa uma comparação relativa à idêntica legitimidade que teria um cidadão individual, alegadamente ameaçado, por um bando de marginais (p.ex. ciganos, drogados ou outros grupos considerados não inseridos na sociedade) para, pelas suas próprias mãos, e com os meios armados que possuísse, os dizimar, antecipando-se, assim, à concretização de um hipotético assalto à sua residência.
Será legítima esta metáfora?
3.5 Como figura de retórica, o menos que se poderá dizer é que a mesma não corresponde aos critérios reconhecidos como adequados à sua utilização.
Foi de Roman Jakobson o principal contributo para determinar o significado das duas espécies de tropos, a metáfora e a metomínia. A metáfora é, para ele, “a substituição de um conceito ao longo do eixo paradigmático, e que está ligado à espécie da série paradigmática, à substituição ‘in absentia’ e à substituição de um conceito semântico por afinidade”(Enciclopédia Einaudi vol. 17, pág. 243).
Posteriormente, certos autores como Umberto Eco, Todorov, Schofer e Rice, desenvolveram e aperfeiçoaram as componentes semântico-lexicais que definem o tropo como “transformação semântica do signo in praesentia para o signo in absentia”.
Ora, à luz destes ensinamentos não pode deixar de se concluir que a metáfora utilizada é pobre e falha dos elementos essenciais para poder servir de base a uma efectiva comparação.
3.6 Mas será que, por desadequada enquanto figura de retórica, ela excede os limites da liberdade de imprensa e é susceptível de constituir ofensa a princípios e a valores fundamentais, como os denunciados de incitamento ou apologia pública de um crime (artigos 297º e 298º do Código Penal), ou incitamento à desobediência civil (artº 330º do Código Penal)?
Julga-se, manifestamente, que não.
Com efeito, para lá de ser particularmente infeliz, a metáfora utilizada pelo Director do “Expresso” no seu escrito não alcança dimensão crítica juridicamente relevante para ser subsumível a quaisquer comportamentos ou condutas consideradas anti-jurídicas.
Ninguém, lendo o escrito em causa, se sentiria legitimado e, menos ainda, impulsionado ou pressionado a armar-se para ir dizimar os marginais do Casal Ventoso, os “pretos” da Musgueira ou os ciganos do Vale do Ave.
Ao contrário, pela própria repulsa que, junto de cidadãos medianamente formados, um tal discurso sempre terá tido, só pode concluir-se que, em vez de justificar a invasão norte americana no Iraque, só a fragilizou, retirando-lhe um dos poucos elementos que ainda poderiam servir-lhe de alicerce legal ao nível do direito internacional público.
4. CONCLUSÃO
Apreciada uma denúncia de Frederico Teixeira Carvalho contra o Director do Jornal “Expresso” por alegado abuso da liberdade de imprensa, por publicação do editorial intitulado “Lágrimas de Crocodilo” no dia 30 de Agosto de 2003, a Alta Autoridade para a Comunicação Social, ao abrigo das competências que lhe confere o artigo 39º da Constituição e a Lei nº 43/98, de 6 de Agosto, independentemente de qualquer apreciação sobre a justeza da posição do editorialista, não considerou que a figura de retórica utilizada pelo mencionado jornalista para fazer apologia da invasão norte americana no Iraque fosse de molde a, pela forma como foi construída, induzir quem quer que seja à prática de qualquer crime, designadamente contra a vida de quem quer que fosse ou à utilização indevida da força para reprimir qualquer tentativa de ofensa a direitos pessoais ou patrimoniais de quem quer que fosse, e, nessa conformidade, deliberou o arquivamento dos autos.
Esta deliberação foi aprovada por unanimidade com votos de Jorge Pegado Liz (Relator), Armando Torres Paulo, Artur Portela, Sebastião Lima Rego, José Garibaldi, João Amaral, Maria de Lurdes Monteiro, Carlos Veiga Pereira e José Manuel Mendes.
Alta Autoridade para a Comunicação Social, 19 de Novembro de 2003
O Presidente
Armando Torres Paulo
Juiz Conselheiro
DELIBERAÇÃO
sobre
DENÚNCIA APRESENTADA POR FREDERICO DUARTE CARVALHO
CONTRA O JORNAL “EXPRESSO” POR ALEGADO ABUSO DE LIBERDADE DE IMPRENSA
(Aprovada em reunião plenária de 19 de Novembro de 2003)
1. A DENÚNCIA
1.1 No dia 4 de Setembro de 2003 foi recebido e-mail de Frederico Teixeira de Carvalho, jornalista do “Tal & Qual” no qual se refere designadamente o seguinte:
“No passado sábado, dia 30 de Agosto, no espaço ‘Política à Portuguesa’, o director do semanário ‘Expresso’, José António Saraiva, assina um texto de opinião intitulado ‘Lágrimas de Crocodilo’, relacionado com a morte do representante da ONU em Bagdad, Sérgio Vieira de Mello.
A dada altura do seu texto, o autor menciona a questão das armas de destruição maciça e diz que isso foi apenas uma ‘razão formal’ para a intervenção norte-americana no Iraque depois dos atentados terroristas do 11 de Setembro em Nova Iorque e em Washington.
E exemplifica isso desta forma:
‘Imagine o leitor que vivia num sítio problemático, perto de um reduto de marginais, que um dia lhe assaltavam a casa, matando um membro da família.
O que faria, se tivesse meios para combater os marginais: ficaria à espera de ser de novo assaltado ou iria ao encontro deles, tentando neutralizá-los?’
Tratando-se de um jornal de referência e sendo um artigo de opinião assinado pelo próprio director, vemos que o mesmo procurou justificar a intervenção norte-americana no Iraque – que não contou com o aval da ONU – comparando-a a um hipotético caso que se poderia passar no seio de uma qualquer família portuguesa que ‘tivesse meios para combater os marginais’”.
Conclui citando os preceitos dos artigos 298º e 330º do Código Penal, respectivamente sobre a “apologia pública do crime” e o “incitamento à desobediência colectiva” que considera aplicáveis à situação e submete o caso à consideração desta Alta Autoridade como entidade competente para garantir a liberdade de imprensa e reprimir os seus abusos.
1.2 Solicitado ao autor do editorial, director do jornal “Expresso”, José António Saraiva, e nessa qualidade, que se pronunciasse, querendo, sobre o teor da denúncia, respondeu o mesmo dizendo textualmente:
“Com o devido respeito pelo órgão que V.Exª dirige, a queixa apresentada contra mim parece-me ridícula e absolutamente despropositada. Não percebo mesmo como a AACS a considerou razoável.
No meu artigo não ‘recompenso’ ou ‘louvo’ alguém que cometeu um crime. Nem incito à ‘desobediência de lei’ ou de ‘ordem pública’. Limito-me a comparar a acção dos EUA no Iraque com a de uma família a quem mataram um parente e procura ‘neutralizar’ os criminosos.
É esta, exactamente, a palavra que utilizo: neutralizar. Ou seja: evitar que cometam outro crime.
Quanto muito, eu poderia ser acusado de avalizar a ideia de que, em determinadas circunstâncias, é legítimo fazer justiça pelas próprias mãos. Mas, mesmo aí, toda a gente conhece as minhas opiniões e sabe como tenho defendido a necessidade absoluta de respeitar as regras do Estado de Direito.
Repito: o que pretendi, na passagem do artigo em questão, foi levar os leitores a compreender o estado de espírito dos americanos, comparável ao de uma família a quem mataram um membro e que, em desespero, procura defender-se indo ao encontro dos criminosos para impedir novos ataques”.
2. O TEXTO EM CAUSA
2.1 No texto em causa, e no que interessa à questão suscitada pelo denunciante, o Director do jornal “Expresso”, sob o título “Lágrimas de Crocodilo”, afirmou:
“A esquerda não invocou a morte de Sérgio Vieira de Mello por razões piedosas – agitou-a como bandeira para condenar a ocupação americana.
Nesta medida – e dito cruamente – esta morte até conveio a essa esquerda.
Por isso, muitas das lágrimas que chorou foram lágrimas de crocodilo.
A invasão do Iraque pelos americanos tem sido objecto de quilómetros de prosa que, no entanto, ignoram quase sempre o essencial.
Discutem-se interminavelmente, por exemplo, as armas de destruição maciça.
Ora não tenho muitas dúvidas de que, nesta questão, Bush e Blair mentiram – ou, pelo menos, empolaram intencionalmente as informações disponíveis.
Mas esse foi apenas o pretexto para a invasão.
A sua ‘razão formal’.
A questão essencial teve (e continua a ter) que ver com o terrorismo.
Imagine o leitor que vivia num sítio problemático, perto de um reduto de marginais que um dia lhe assaltavam a casa, matando um membro da família.
O que faria, se tivesse meios para combater os marginais: ficaria à espera de ser de novo assaltado ou iria ao encontro deles, tentando neutralizá-los?
Foi isto – com uma simplicidade que é a sua fraqueza e a sua força – que os EUA fizeram: atacados brutalmente no 11 de Setembro, foram dar luta aos terroristas no seu terreno.”
2.2 O que é questionado é saber se, num artigo de opinião, e independentemente da liberdade de imprensa que a Constituição e a Lei asseguram e esta Alta Autoridade é suposta garantir, se não estará perante um excesso que a mesma Lei impede e condena.
E, isso, na medida em que, por raciocínio comparativo, se equiparam no texto em causa, os EUA a um vulgar cidadão, acossado, na sua própria casa, por um bando de marginais – os iraquianos – na expectativa de ser assaltado.
Isto mesmo que os marginais não tivessem armas de fogo, mas ameaçassem atacar apenas com as suas mãos e de surpresa.
Nesta situação, e alegadamente, o articulista, Director do “Expresso”, no seu editorial, interroga-se:
“O que fazia, se tivesse meios para combater os marginais: ficaria à espera de ser de novo atacado ou iria ao encontro deles, tentando neutralizá-los?”
Ou seja, responderia à força com a força, ou recorreria antes à Polícia para que detivesse os suspeitos?
Tiraria desforço indiscriminadamente contra quem quer que fosse, que lhe parecesse suspeito ou entregaria a resolução do caso à Justiça para que julgasse e condenasse os culpados?
Nestas hipóteses, que o Director do “Expresso” enuncia, a sua opção, para justificar a acção dos EUA, foi a da resposta pela força, em vez do recurso aos meios legais e à intervenção da Justiça para julgar os culpados.
Será lícita uma tal afirmação, no contexto em que foi tornada pública pelo escrito?
3. APRECIAÇÃO DA SITUAÇÃO À LUZ DO DIREITO APLICÁVEL
3.1 A Constituição, no seu artigo 37º dispõe:
“1. Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações.
2. O exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura.
3. As infracções cometidas no exercício destes direitos ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal, sendo a sua apreciação da competência dos tribunais judiciais”.
E o artigo 38º acrescenta
“1. É garantida a liberdade de imprensa.
2. A liberdade de imprensa implica:
a) A liberdade de expressão e criação dos jornalistas e colaboradores literários, bem como a intervenção dos primeiros na orientação editorial dos respectivos órgãos de comunicação social quando pertencerem ao Estado ou tiverem natureza doutrinária ou confessional;
(...)”
Por seu turno, o artigo 39º atribui a esta Alta Autoridade a incumbência de “assegurar a liberdade de imprensa... bem como a possibilidade de expressão e confronto das diversas correntes de opinião”.
3.2 Por seu turno, a Lei de Imprensa especifica que
“a liberdade de imprensa tem como únicos limites os que decorrem da Constituição e da lei de forma a (...) defender o interesse público e a ordem democrática”.
E, no seu artigo 22º, é garantida aos jornalistas a “liberdade de expressão e de criação”, cujo conteúdo é definido no Estatuto do Jornalista nos termos do seu artigo 7º nº1, sem prejuízo do cumprimento dos deveres constantes do seu artigo 14º e do respectivo Código Deontológico, do qual se ressalta a obrigação de relatar os factos com rigor e exactidão e interpretá-los com honestidade, para além de dever respeitar a orientação e os objectivos definidos no estatuto editorial do órgão de comunicação para que trabalham.
3.3 Entre as óbvias limitações à liberdade de imprensa, por constituir violação dos princípios de interesse e ordem públicas fundadores da ordem democrática, estão as práticas que se possam subsumir como violação dos preceitos dos artigos 20º e 24º da Constituição ou dos artigos 234º, 239º nº2, 240º nº2, 252º, 297º, 298º, 314º, 316º, 326º e 330º do Código Penal.
3.4 Será do confronto do estabelecido nestes preceitos e à luz dos normativo deles decorrente que se impõe apreciar e analisar o escrito publicado pelo Director do “Expresso”.
Ora dúvidas legítimas não são possíveis quanto à inteira liberdade do articulista, mesmo na qualidade de Director do semanário, para exprimir as suas opiniões favoráveis à intervenção armada norte-americana no Iraque.
Acontece, porém, que, para justificar tal invasão, mesmo sem a comprovação da existência de armas de destruição maciça que poriam em risco a paz mundial, o Director do “Expresso” usa uma comparação relativa à idêntica legitimidade que teria um cidadão individual, alegadamente ameaçado, por um bando de marginais (p.ex. ciganos, drogados ou outros grupos considerados não inseridos na sociedade) para, pelas suas próprias mãos, e com os meios armados que possuísse, os dizimar, antecipando-se, assim, à concretização de um hipotético assalto à sua residência.
Será legítima esta metáfora?
3.5 Como figura de retórica, o menos que se poderá dizer é que a mesma não corresponde aos critérios reconhecidos como adequados à sua utilização.
Foi de Roman Jakobson o principal contributo para determinar o significado das duas espécies de tropos, a metáfora e a metomínia. A metáfora é, para ele, “a substituição de um conceito ao longo do eixo paradigmático, e que está ligado à espécie da série paradigmática, à substituição ‘in absentia’ e à substituição de um conceito semântico por afinidade”(Enciclopédia Einaudi vol. 17, pág. 243).
Posteriormente, certos autores como Umberto Eco, Todorov, Schofer e Rice, desenvolveram e aperfeiçoaram as componentes semântico-lexicais que definem o tropo como “transformação semântica do signo in praesentia para o signo in absentia”.
Ora, à luz destes ensinamentos não pode deixar de se concluir que a metáfora utilizada é pobre e falha dos elementos essenciais para poder servir de base a uma efectiva comparação.
3.6 Mas será que, por desadequada enquanto figura de retórica, ela excede os limites da liberdade de imprensa e é susceptível de constituir ofensa a princípios e a valores fundamentais, como os denunciados de incitamento ou apologia pública de um crime (artigos 297º e 298º do Código Penal), ou incitamento à desobediência civil (artº 330º do Código Penal)?
Julga-se, manifestamente, que não.
Com efeito, para lá de ser particularmente infeliz, a metáfora utilizada pelo Director do “Expresso” no seu escrito não alcança dimensão crítica juridicamente relevante para ser subsumível a quaisquer comportamentos ou condutas consideradas anti-jurídicas.
Ninguém, lendo o escrito em causa, se sentiria legitimado e, menos ainda, impulsionado ou pressionado a armar-se para ir dizimar os marginais do Casal Ventoso, os “pretos” da Musgueira ou os ciganos do Vale do Ave.
Ao contrário, pela própria repulsa que, junto de cidadãos medianamente formados, um tal discurso sempre terá tido, só pode concluir-se que, em vez de justificar a invasão norte americana no Iraque, só a fragilizou, retirando-lhe um dos poucos elementos que ainda poderiam servir-lhe de alicerce legal ao nível do direito internacional público.
4. CONCLUSÃO
Apreciada uma denúncia de Frederico Teixeira Carvalho contra o Director do Jornal “Expresso” por alegado abuso da liberdade de imprensa, por publicação do editorial intitulado “Lágrimas de Crocodilo” no dia 30 de Agosto de 2003, a Alta Autoridade para a Comunicação Social, ao abrigo das competências que lhe confere o artigo 39º da Constituição e a Lei nº 43/98, de 6 de Agosto, independentemente de qualquer apreciação sobre a justeza da posição do editorialista, não considerou que a figura de retórica utilizada pelo mencionado jornalista para fazer apologia da invasão norte americana no Iraque fosse de molde a, pela forma como foi construída, induzir quem quer que seja à prática de qualquer crime, designadamente contra a vida de quem quer que fosse ou à utilização indevida da força para reprimir qualquer tentativa de ofensa a direitos pessoais ou patrimoniais de quem quer que fosse, e, nessa conformidade, deliberou o arquivamento dos autos.
Esta deliberação foi aprovada por unanimidade com votos de Jorge Pegado Liz (Relator), Armando Torres Paulo, Artur Portela, Sebastião Lima Rego, José Garibaldi, João Amaral, Maria de Lurdes Monteiro, Carlos Veiga Pereira e José Manuel Mendes.
Alta Autoridade para a Comunicação Social, 19 de Novembro de 2003
O Presidente
Armando Torres Paulo
Juiz Conselheiro
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