Chegou-me há dias às mãos, via "Galileu", este formidável livro de contos de Altino do Tojal...
A obra, lançada em Janeiro de 1974 pela "Prelo" - meses antes da pseudo-Revolução que implantou a actual pseudo-Democracia -, é composta por vários contos, entre os quais aquele que dá o nome ao livro.
"A Homenagem" é um retrato dos vários convivas de uma festa de homenagem ao director de um jornal. Está lá o chefe de redacção, "homem baixo, de faces redondas, cabelo penteadinho, lambido de brilhantina", que chora ao bajular o director, provocando o comentário do observador: "Caramba! O chefe de redacção é homem preparado para a vida, sabe chorar quando é preciso!".
Há o fotógrafo sem escrúpulos morais, que se vangloria daquela vez quando, com palavras secas e insensíveis, conseguiu fazer chorar a mãe de uma menor violada e morta às mãos do companheiro de modo a conseguir "o boneco" suficientemente dramático para a primeira página. Há o poeta frustrado que resolveu ser "marxista-leninista", pois, como explica o autor do conto, "não exige talento e sempre dá prestígio". Há ainda o "medíocre", recém-promovido a chefe da Secretaria, um "jornalista que corta muito bem papel e se especializou em provocar o despedimento dos camaradas". Apresenta-se também o velho repórter que, apenas pela idade subiu a redactor - mas que não se importa com a perda das diuturnidades, pois o mais importante é a honra do actual cargo (se bem que o que máximo que vai poder fazer serão artigos sobre coretos e latrinas públicas). O retrato prossegue com a conversa do director sobre as suas aventuras sexuais, havendo ainda o Presidente do Conselho de Administração que se passeia entre os comes e bebes acompanhado por duas gratas meninas, uma de "teta comprida" e outra "de cu amplo". Um autêntico homem do povo que abandona a sala para se retirar para o seu luxuoso gabinete na companhia da moça da "teta comprida". Sem esquecer ainda o jornalista da voz de trovão, que, diz-se, ganhara a promoção levando coristas ao gabinete do director e escandaliza as senhoras presentes ao incentivar um etilizado camarada a contar como escreveu uma comovente reportagem sobre a peregrinação a Fátima a partir de um cabaré.
Todos estas personagens, contudo, são secundárias no conto. O verdadeiro grande personagem é o redactor da secção do Estrangeiro. Esse é que merece grande atenção da parte de Altino do Tojal. É aquele que tem o retrato mais completo, goza de maior atenção nos diálogos. E tem a simpatia do autor: "Educado rudemente pela vida, mas ainda assim puro de franqueza transparente como vidro - ao extremo suicida de não esconder que uma Imprensa castrada é a sua esposa legítima a Literatura é a sua amante". Diz-nos Altino que o redactor da secção do Estrangeiro trabalha "apaixonadamente" numa "divertida sátira de implacável denúncia", mas parece ignorar que quando esse texto for publicado lhe poderá valer "o rancor dos poderosos, do pulguedo mandão, da mediocridade bem instalada - talvez o despedimento, o desemprego, o pão a voar". É da boca deste redactor que saiem as palavras mais poderosas do conto "A Homenagem":
"(...) mas muito menos explicável, quanto a mim, ainda é o motivo por que marcha arrogantemente para a autodestruição um animal cuja caixa craniana aloja um maquinismo de raciocinar...".
"(...) Se torturaste um inocente és um miserável; mas se fui eu a torturá-lo, enfim, essas coisas acontecem, ninguém é perfeito (...)".
"Isto faz lembrar a justificação dada por um pobre diabo arrastado à presença do macedónio [Alexandre, O Grande]: 'Sou pirata porque só tenho um barco; se tivesse uma frota, como tu, seria um conquistador...'".
"Simon Wiesenthal, o "caçador de nazis", acaba de anunciar, todo ufano, que localizou mais caça grossa e que é preciso muito cuidado para não a espantar. Mas o caçador intrépido, o vingador dos oprimidos, o arqueólogo do crime, deve saber que, derramado por judeus ou não-judeus, por gente branca, gente negra ou gente amarela, o sangue é todo vermelho, a lágrima é toda igual. Sendo assim, porque não se põe esse incansável perseguidor de múmias no rasto dos Bormanns de hoje, dos que estão no activo, tão fácil de seguir?".
"(...) Que um desgraçado jornalista nem sequer tem a elementaríssima liberdade de ver sair na íntegra aquilo que escreve e que a sua consciência lhe dita? Que lhe policiam a pena na banca de trabalho e lhe acenam constantemente com a chantagem do pão, forçando-o à exploração sensacionalista do gosto mórbido das massas, mas impedindo-o, por conveniência, de trazer à luz a raiz da miséria que gera o delito e o drama?".
"(...) Como pode o orgulhoso homem sideral, vestido de amianto e manipulando estonteantes tecnologias, pensar no Cosmos em termos de pioneirismo expansionista se não conseguiu ainda ser autêntico senhor do seu próprio planeta em termos de paz e justiça social?".
Quem, no entanto, quem tenta dar conselhos sábios ao redactor da secção do Estrangeiro é o contínuo do jornal: "Vá por mim: chegue-se aos grandes, ria c'o eles. Olhe que eles fodem-no!". O contínuo é assim a pessoa mais avisada e informada sobre a vida dentro e fora do jornal. São dele os melhores conselhos e a mais dura análise da realidade: "Isto num tem salvadoiro. Cada um puxa por si. Veja essas putas e esses paneleiros pra'í a cair de bêbados... Inda diz o nosso jornal que um desgraçado pai de filhos, num sábado à noute, pra esquecer misérias fez desacatos... Mas deixe-me calar, senão ainda me fodo! Hoje, fique você sabendo, ninguém quer saber de ninguém. Cada um mete-se na toca com'ò coelho, e os outros que se fodam. Seja das direitas ou do reviralho, é igal (...)". E termina o contínuo: "Você é poeta, está fodido, só lhe digo isto...".
O conto termina já fora do jornal. À noite, com o autor a contemplar o edifício e a perguntar-se que colossal edifício será aquele. A pergunta terá sido feita em voz alta, a ponto de ter sido escutada por dois operários. E um deles elucida-o:
"É um grande jornal, saiba você! - diz em tom severo. - Nem em Lisboa se encontra um igual!", e acrescenta-se sobre o diário: "Mas aquele ali é um jornal de tomates, lá isso é. Conta as misérias todas dos pobres. Até traz os relatos dos jogos da terceira divisão distrital".
As palavras finais do conto "A Homenagem" descreve-nos brevemente o edifício, mas de forma suficiente para que se possa intuir que jornal poderá ali funcionar:
"E demora um olhar enlevado naquele altíssimo edifício a guindar-se arrogantemente ao negrume quase sem estrelas, com todas as janelas iluminadas, qual poderoso foguetão prestes a disparar para o infinito"
Daqui.
Numa rara entrevista, o autor lembrou a sua passagem pelo "JN":
"Trabalhei sete anos na redacção do Jornal de Notícias e ao fim desse tempo despediram-me.
- Porquê?
- Porque a já extinta editora Prelo acabara de publicar Os Putos, título definitivo do Sardinhas e Lua em edição bastante aumentada. Entre os novos contos havia dois, 'O Campo de Judite' e 'O Gancho', que desagradaram aos omnipotentes senhores do Jornal de Notícias. Despediram-me sem ao menos me ouvirem. Foi em Maio de 1973, estava-se a menos de um ano da Revolução dos Cravos...".
Por fim, dedicado a todos os actuais jornalistas que sofrem as agruras da profissão, aqui vos deixo a carta de despedimento que figura no último conto deste livro, intitulado "O Quarto":
"Nos termos do artigo 2º do contrato colectivo do trabalho, comunicamos a V. Ex.ª que os seus serviços deixaram de nos interessar, pelo que solicitamos que passe pela nossa tesouraria para acerto de contas e deixe lá ficar o cartão que o acredita como redactor deste jornal. Redacção alguma o acolherá depois disto - baluartes solidários, força monolítica que somos. Se quiser continuar ligado aos jornais, venda-os pela esquinas - uma profissão tão digna como qualquer outra. No caso de optar pela emigração como via de sobrevivência, desejamos sinceramente que seja mais afortunado (ou mais hábil) do que na primeira tentativa. Com o seu desprezo absoluto pelo espírito de classe e o seu idealismo antiquado tentou V. Ex.ª desviar este prestigioso jornal das prósperas calhas que ele se propôs em boa-hora seguir. Esforço gorado, porque estamos atentos. No livrito que escreveu, V. Ex.ª não nomeou ninguém; mas, desgraçadamente para si, todos nos reconhecemos. Que desastrado V. Ex.ª é! Porque não tomou por modelos os contínuos, ou mesmo, vá lá, os repórteres-estagiários? Soltávamos umas boas gargalhadas cá nas nossas poltronas e a coisa morria aí. Ignora V. Ex.ª que a sátira só é legítima quando fere os outros e que este jornal existe para especular sobre factos inofensivo e não para ser motivo de grave especulação? Ignora que um camarada seu, tenha as limitações que tiver, cometa as infâmias que cometer, é personalidade intocável, em especial se se trata dum superior hierárquico? Por delito menos grave foi o grande Swift amarrado ao pelourinho, mas talvez V. Ex.ª ignore quem foi Swift, já que nem tinha as habilitações indispensáveis para exercer a profissão quando, há sete anos condescendemos em admiti-lo. Pretendendo sabotar os ideais do jornal que lhe dava de comer e beber, e que V. Ex.ª - segundo informações dos nossos serviços de espionagem - considera presunçosamente 'uma estufa de medíocres', não nos ficou outra opção além do despedimento puro e simples, ainda que na modalidade sem justa causa..."
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