20041205

O senhor Cavacas

O meu pai telefonou-me agora para me dizer que o meu avô, o pai da minha mãe, acabou de falecer.
Era o meu único avô, visto que o pai do meu pai faleceu quando este último era adolecente.
O senhor Cavacas, cujo nome ostento com orgulho no meu bilhete de identidade, foi durante muitos anos o barbeiro da Rua António Enes, no Porto.
Eu adorava aquela sua loja, pois passava horas sentado a ler as revistas do "Mundo de Aventuras", "Major Alvega", "Tarzan" e outras que eram editadas pela Agência Portuguesa de Revistas. A entrada para a casa dos meus avós fazia-se por uma porta da própria barbearia e havia atrás um jardim onde a minha avó criava as galinhas para o fabuloso arroz de cabidela que nunca mais comi.
Enquanto eu entrava no mundo das aventuras aos quadradinhos, o meu avô cortava cabelos aos clientes e conversava, conversava, conversava... Sempre a dar à língua o Cavacas e eu, ali, calado, a ler as aventuras. Ainda hoje me lembro de ele um dia comentar com um cliente a sua preocupação com a minha aparente apatia e falta de relacionamento com os amigos: "Pois, fica ali a ler e não conversa com os amigos...", escutei e ri-me para dentro.
Hoje, se sou jornalista e faço disto um modo de vida onde converso e procuro histórias, em parte devo-o ao espírito daquele velho barbeiro que está sempre a dialogar com os clientes.
Quando o meu avô se reformou e deixou a casa da barbearia passou a ser um ilustre barbeiro ao domicílio, indo visitar os seus antigos clientes do Carvalhido, sempre com aquele seu chapéu característico e a mala de utensílios que a mim mais pareciam dignos de um filme de terror (ainda hoje me penteio apenas com um jeito de mão. Outra coisa: a minha mãe nunca quis que fosse o meu avô a cortar-me o cabelo. Entende-se, pois a especialidade dele era a máquina zero, que se revelaria uma óptima opção devido à próximidade de um quartel militar na zona...).
O meu primeiro carro foi o "carocha" do avô Cavacas, o mesmo onde, quando eu era criança, passeava aos domingos com os meus avós pela Foz a buzinar no meu volante azul de plástico, a comer laranjas e línguas da sogra, a ver os pescadores nas palmeiras e a ouvir o relato dos jogos da bola comentados por um brasileiro histérico.
O senhor Cavacas poderia ter tido os últimos anos de vida cheios de histórias, não fosse, há uns anos, uma estúpida operação feita por estúpidos médicos que nunca nos avisaram dos verdadeiros riscos da intervenção, que acabou por atirá-lo para uma cadeira de rodas num estado semi-vegetal. Aqui fica a homenagem à minha mãe e avó que sempre cuidaram do Cavacas. E aos meus irmãos que iam lá a casa dele cortar-lhe o cabelo...
Há muitos anos que Deus deveria ter chamado o velho barbeiro.
Chamou-o hoje.
Deus chegou finalmente à conclusão de que já andava a precisar de alguém que lhe aparasse aquelas longas barbas...

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